terça-feira, 17 de julho de 2007

Sentido

O calor de minha respiração contrastando com o frio que a chuva promove lá fora. Essa mistura embaça as vidraças e eu tento passar o tempo escrevendo palavras soltas com a ponta do dedo. Não adianta, por mais que eu tente esquecer aquele lugar não sai de mim. Aquele lugar que teima em aparecer nos meus sonhos e que, em momentos de vigília, atormenta meus pensamentos. Por que algo pode me deixar tão feliz quando estou ausente de mim e tão machucado quando consciente? Acabo de perceber que as palavras que escrevo são de um sistema que eu não conheço, mas eu sei que elas têm significado, pois pra mim elas fazem tanto sentido, um sentido tão louco, que eu poderia adaptá-las à minha necessidade. Só que elas machucam, elas incomodam, elas lembram o lugar que eu queria estar e que eu não sei onde está, nem mesmo como é. Conheço apenas a sensação de dormitar entre nuvens e ondas e fogo, um desejo imenso que aquele lugar tem. Queria viver lá, mas não acho. De noite, sem abrir os olhos, tento tatear em busca de alguma pista que me faça reconhecê-lo quando acordado. Para que, quando eu passe caminhando por lá, eu saiba que é o que procuro. Entretanto, de manhã, já não lembro as pistas que criei, sobra-me apenas a sensação, e eu sei que ela não é igual durante o dia, não adianta procurar.

sexta-feira, 1 de junho de 2007

O Último Dia


Paradoxo de Tchecov. Um homem vai ao cassino, ganha um milhão, volta pra casa e se mata.


O Último Dia

Último dia de trabalho. Despedidas são sempre marcantes, todos de meias palavras, poucos sorrisos; exceto a despedida de Pedro, que está indo embora para realizar seu grande sonho. Enquanto caminhava, observando pela última vez todos os detalhes do prédio, muitos que sequer percebera em tantos anos dedicados à empresa, refletia:

“Esperei tanto por esse momento. Por vezes achei que nunca chegaria. Lembro de quando cheguei a esta empresa, jovem, meu primeiro emprego, já imaginando o dia em que me aposentaria e passaria a desfrutar da totalidade de meu tempo para realizar pequenos desejos”.

“Desde o início sempre fui muito sozinho por aqui. Alguns me olhavam com desconfiança e me chamavam paranóico. Pura implicância com algumas de minhas manias, eles não entendem. Que mal há em querer se sentir seguro? Para isso servem cofres e chaves, faço um bom uso deles!”.

Apenas Pedro não via o nível de sua obsessão pela segurança de suas economias. Ele guardava todo seu dinheiro em um antigo cofre, fechado a chave, atrás do armário de escova de dentes no banheiro de sua casa. Além disso, olhava constantemente se a chave continuava junto de seu corpo. A idéia de que alguém soubesse seu plano de felicidade e roubasse o que havia juntado com tanto sacrifício o atormentava.

Enfim chegou o momento do adeus, Pedro nunca mais retornaria a entrar no prédio da empresa, afinal nunca gostou de estar ali. Agora ele poderá pôr em prática seu plano: realizar pequenas vontades, coisas que nunca fez e que agora gastará suas economias satisfazendo todas elas.

Sai do prédio sem dizer nenhuma palavra a seus agora ex-colegas. Não é necessário, ninguém notará sua falta, pensa ele. Enquanto caminhava no mesmo trajeto que o levava em casa todos o dias, sempre olhando em todas as direções para se certificar que não havia ninguém a espreita, tentava escolher qual seria sua primeira atividade como aposentado. No meio do caminho, entre uma loja de doces e outra de moda feminina, havia um cassino.

Ele nunca entrara em um cassino, só os conhecia de alguns filmes que passavam na televisão. Portanto, resolveu que este seria seu primeiro passeio para aproveitar seu tempo livre. Entrou no cassino e ficou um pouco desapontado, pois não havia tanto luxo como nos que apareciam no cinema. Não era feio, muito pelo contrário, apenas diferente do que imaginara.

Entretanto, era hora de jogar. Olhou para o lado e viu uma mesa com muitas pessoas ao redor, foi conferir: era a mesa da roleta. Ficou fascinado com a bolinha girando, passando em cima das arestas numeradas. Decidiu que este seria o seu jogo, não tinha dinheiro pra ficar gastando à toa, afinal, sua aposentadoria estava recém começando, não podia gastar todas suas economias em tão pouco tempo. Aproximou-se da mesa e percebeu que não sabia como jogar. Resolveu pôr metade das fichinhas, que havia adquirido no guichê, no mesmo número: vinte e oito, o dia do seu aniversário. A bolinha girou, girou até parar completamente no número quinze. Pedro não desanimou, tentaria mais uma vez! Largou o resto de suas fichas novamente no número vinte e oito, a rodada valia um milhão. Pedro tinha certeza de que não ganharia nada. Um milhão é impossível, pensava ele. No fundo, ele não pensava isso, queria acreditar que seria um milionário em seu primeiro dia de férias vitalícias. Foi o que aconteceu, surpreendentemente, a bolinha parou exatamente na casa vinte e oito.

Estarrecido com a própria façanha, retirou-se lentamente e deixou-se cair em um sofá vermelho que ficava junto à parede próxima à mesa de jogo. Apesar de feliz, Pedro estava preocupado com as pessoas que o seguiriam para roubar sua nova fortuna. Caminhou até o guichê, trocou suas fichas por uma mala repleta de dinheiro e saiu do cassino furtivamente. Andava pelas ruas agarrado em sua mala, olhando para todos os lados, imaginando se aquelas pessoas que passavam por ele sabiam o que tinha nos braços. “Não, ninguém tomará esse dinheiro de mim, é meu presente. Meu!”, pensava Pedro.

Chegando em seu prédio, resolveu subir os oito andares de escada. Por mais que a idade já o atrapalhasse nesta atividade, achou melhor do que a possibilidade de ficar preso no elevador junto com sua mala. Alguém poderia chantageá-lo para que o retirassem daquele cubículo. Achava que poderiam levar o dinheiro. Subia as escadas devagar, prestando atenção em todos os ruídos. Ele percebeu passos! Passos lentos atrás dele, poderia ser o vento, mas pareciam passos. Começou a subir as escadas na maior velocidade que seu corpo agüentava. Os passos paravam e recomeçavam diversas vezes. Conseguiu entrar no apartamento. Desesperado juntou todos os pedaços de madeira que encontrou e pregou paredes e janelas. Queria se sentir seguro, sentir que ninguém alcançaria seu dinheiro.

Batidas na porta, não restava mais nenhuma dúvida: alguém estava ali. “Quem está ai? Vá embora! Deixe-me em paz”, disse Pedro. As batidas recomeçaram. Completamente desesperado, o aposentado arranca as madeiras recém pregadas de uma das janelas de seu apartamento, agarra a mala e, antes de se jogar, ainda grita “Ninguém roubará o que é meu!”. Enquanto isso, no lado de fora do apartamento, o carteiro continua a bater na porta esperando que alguém o atenda para assinar o boletim de entrega.

Nana Behle
março/2007


segunda-feira, 28 de maio de 2007

A Cidade

Conto escrito ontem para o concurso individual de contos da turma.

A Cidade

Havia muito tempo que Mauro andava dormindo ao relento. Desde que perdera tudo. Casa, mulher, cachorro, televisão, cama, tudo. Andava sem destino pelas ruas da cidade, mas sempre com uma ponta de esperança. Esperança de ter o mínimo de dignidade, de poder voltar para os braços de sua amada, sem vergonha e com algum dinheiro. Entretanto, desde que saíra em busca de uma chance, só encontrou fome, frio e desprezo.

Na mesma cidade, vivia Joana junto com seu filho João. O menino era seu orgulho, apesar de fraco e um tanto doente. Eles viviam em um bairro afastado do centro da cidade, em uma casinha pequena. Ela acordava todos os dias as cinco da manhã para trabalhar em uma casa de família. Enquanto passava o dia limpando janelas e azulejos, sua idosa vizinha tomava conta de João. Para ele era muito penoso, pois a senhora não tolerava nenhum ruído e muito menos bagunça. Seus dias se resumiam a esperar o retorno da mãe e aguardar ansiosamente pelos dias que ela tinha de folga.

A cidade, como muitas outras, era uma zona hostil e que não oferecia muitas oportunidades para pessoas sem estudos e pouca experiência, como Mauro. Até agora, ele sobrevivera com pequenas esmolas recebidas de algumas pessoas que por ele passavam e sentiam pena. Com a chegada do inverno às pessoas pareciam não ter mais tempo para sentir pena. Talvez o frio as obrigasse a passar correndo pelas ruas e assim não chegavam a notar pessoas que precisavam desesperadamente de qualquer ajuda. A fome e o frio reduziam as forças que Mauro ainda dispunha para procurar alguma forma de sobrevivência. Esmaecendo o brilho da esperança que ele ainda carregava.

Aquele parecia ser o dia mais frio do ano e Joana estava contente, pois não precisaria carregar baldes com água gelada para lavar nenhum chão, era sua folga. Resolvera aproveitar seu dia livre para passear com seu filho. Eles iriam caminhar em meio às pessoas no centro da cidade, depois ela tomaria suco de laranja olhando o rio enquanto João se divertiria com os brinquedos da praça. O plano parecia muito bom e a criança estava radiante com a programação proposta pela mãe.

Andando com passos lentos, mãe e filho desciam a rua coberta com pedestres em passos rápidos. Seguiam calmos, felizes por estarem juntos naquele dia gelado e bonito. Desciam devagar, absortos na companhia um do outro. Joana pensando em como era bom não ser sozinha, ter seu filho perto, e João pensando nos brinquedos e na possibilidade de fazer muito barulho sem que ninguém o mandasse ficar quieto.

Mauro já estava com suas forças esgotadas, sentia-se no limite entre o desespero e a insanidade. Ele começava a pensar em ir contra os seus princípios, afinal, já nem sabia se valia ter princípios em uma situação como a que estava enfrentando. Queria apenas sobreviver, queria uma chance de voltar a ser alguém, mas não conseguia ver nenhuma alternativa.

Descendo a rua com dificuldade, Mauro avistou a mulher e a criança que pareciam estar descuidados. Resolveu não pensar muito e, juntando o resto de energia que ainda possuía, correu em direção aos dois e arrancou a bolsa dos braços de Joana. Com o susto ela começou a gritar para que pegassem o ladrão. Havia tanta gente e a algazarra era tanta que não demorou nem um segundo para que João se perdesse de sua mãe.

Algumas daquelas pessoas apressadas se solidarizaram com a situação de Joana e, enquanto alguns corriam desesperados com medo de um eventual tiroteio, elas corriam atrás de Mauro. Na correria, a multidão atropelou João, pisavam em cima do garoto que já não encontrava voz para berrar e pedir ajuda. Eles só conseguiam pensar em sair daquela zona perigosa, correr até um abrigo, apesar de nenhum disparo ter sido ouvido.

Quando Joana percebeu que seu filho estava estirado e machucado no asfalto gelado, gritou e correu em sua direção. Abraçando solitária o filho que já não se movia. Enquanto a alguns passos dali, uma multidão se esmerava em dar chutes e pontapés no faminto Mauro.

Nana Behle
maio/2007